Autorretrato - Trem

    Esperei o trem passar, não era um hábito, nem um desejo, era apenas a passagem do tempo. Fiquei um pouco demais, além do necessário, mas foi exatamente o contrário. Quem viu não entendeu qual era o propósito, como se precisasse servir a algum tipo de momento, como se fosse algo redentor, mais do que o planejado, mas não sabiam que eu esperava, desde o princípio, toda a incerteza da jornada.

    Saí caminhando pelo trilho, acharam que estava enlouquecida, seguiram meus passos como os urubus plantados nos galhos secos das árvores, mas foi apenas isso. Caminhava como se os passos fossem meus únicos aliados, mas sabia que nem isso me cabia. Deixaram-me em paz por fim, pois fui longe demais, e já não estava mais sendo apropriado aquele movimento. Avisaram alguém, como se em algum momento eu fosse servir de exemplo.

    Continuei até sentir o relento, cheguei até o desconhecido, até um lugar abandonado como o sentimento que me carregava. Já não havia ninguém preocupado com o meu estado, então relaxei, deixei todo aquele peso rolar morro abaixo, escorregar pela vegetação como se aquele silêncio fosse reconfortar a solidão que me acompanhava. De todo esse caminho, ninguém esperava que eu me manteria viva, que o que morreria seriam as noções que quiseram me deturpar.

    Depois do horário, sem nenhuma luz acesa na esperança do encontro, despedi-me de tudo o que não poderia carregar, tudo aquilo que fui me livrar. Deixei o relógio no caminho, pois a noção de horas já não era uma realidade tão atraente, precisava de apenas mais uma troca de roupas, assim chegaria na próxima estação. Nesse momento ninguém reconheceu a louca mulher entrando formalmente, viram apenas mais uma passageira, sentei no mesmo lugar e parti de encontro ao fim dos tempos.

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