Autorretrato - Corvo do adorno

    Divida para mim o tempo, pois tenho aqui um pedaço de vida que não se encaixa em nenhum momento, por mais que eu queira, não consigo esconder que nasci nesta vida sem eira nem beira. É um fardo dos que tem poucos cargos, roer a fruta até a semente, mas é a maneira que a vida se apresentou para a gente.
    Pode ser que não te faça todo o sentido, mas já me acostumei com os erros de linguagem, faz parte de estar muito perto da margem. Acho que buscar meu reflexo foi um erro, pois quanto mais me vejo, mais percebo que estou longe de pertencer à essa civilização, mas para você só fica uma lista de desapreço com todos esses meus erros.
    Entregue-me um pedaço de carícia neste mundo cheio de malícia, pois eu já não consigo diferenciar a nobreza da mão que me estendem. Sempre tive muita aptidão para ler as almas, mas isso não me ajudou em nada, só perdi os juízos tentando falar com algum sentido. Perdi-me no meu umbigo.
    Debata-se na sua própria carcaça, pois os rótulos não caem sem antes afetar as profundezas. Pode ser um exagero nas palavras, mas não me deixaram sonorizá-las, então a expressão saiu um tanto dos eixos. Fiquei entre o léxico e o defeito.
    Perca um pouco de tempo, mesmo que te digam suspeito de trair a nação, pois acho que já está no tempo de perceberem que a nação é a cor que está na sua mão. Uma vida vale mais que um patrão, pois ninguém se livra de ser gente. Enrolei a massa nos dentes para tentar fugir dessa noção, ocupar o tempo com alguma proporção, mesmo que isso não exija qualquer exatidão.
    Deixe a sua cara bem lavada.  Chegamos finalmente na questão, e só disfarcei até então, pois sabia que seria o primeiro a dizer não. Julgaram-me silêncio, mas quando falei, espantei até os quatro ventos. Nunca tive medo de mim, foi um equívoco achar que o meu silêncio era falta de conhecimento. Espantei todos os corvos que queriam putrefazer a beleza quando perceberam que já havia me desfeito do respeito, mesmo com todos os meus medos.

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