Demos - Um desabafo sobre exílio e luto em tempos de pandemia

            Estava lendo uma entrevista sobre o fascismo e sua possibilidade de existência e como seria sua configuração no Brasil nesse governo bolsonarista em que estamos vivendo, uma breve reflexão sobre o que foi o integralismo, e, comecei a pensar em algumas palavras que estamos vivendo nessa pandemia. Esse texto é um desabafo de pensamentos. Talvez alguém nessa loucura encontre um pouco de conforto aqui, sinta-se menos sozinhe. Talvez esse texto seja só para mim mesme.

            Ontem (06/06/2020) foi retirado do site oficial do governo os dados sobre a quantidade total de mortos pelo covid-19, infectados e todos os gráficos. Entrei numa tristeza profunda. Veio aquela mesma sensação de perda, luto, que tive quando o Bolsonaro ganhou a eleição. Comecei a pensar que temos a real possibilidade de entrar em um regime autoritário. Quem não gosta de bandeira é ditadura, lembro do meu professor de geografia falando isso em uma aula de geopolítica que tive na escola. Nosso atual presidente não tem partido. Só eu acho isso assustador? Manipulação de estatísticas é manobra de regime totalitário, li ontem em uma matéria sobre essa ação do presidente de excluir/omitir esses dados da população, e do mundo. No dia anterior, uma sexta-feira, o presidente adiou a divulgação desses dados para que um grande jornal (Jornal Nacional, Rede Globo) não divulgasse esses dados. Então as 21h45 eles fizeram um plantão. Interromperam a programação da rede para divulgar os dados.

Com esses acontecimentos, fora tantos outros que estão em andamento em plena pandemia, julgamentos e inquéritos, abuso de poder, manifestações pró-fascistas, visibilidade de casos que mostram um pouco do genocídio da população negra e indígena, pensei na real possibilidade de um governo totalitário se instalar com um golpe aqui no país. O que significa exílio e luto nesse momento que estamos.

Comecemos pelo exílio. É estranho pensar esse conceito, pois estou no meu país, parece que estou diminuindo as vidas que sofreram com a ditadura e as guerras usando essa palavra, mas estamos restringidos pela pandemia e por um medo invisível de uma possível contaminação das pessoas ao nosso redor. Não sei se é pelo fato de estar cumprindo o isolamento social, pois não estou saindo de casa para trabalhar, saio apenas para ir ao mercado, que talvez eu esteja com os cuidados elevados. Estou me expondo ao mundo com uma frequência mínima, então não ‘baixei a guarda’ com relação aos cuidados sanitários e distanciamento social. Acredito que quem sai mais vai criando uma falsa segurança. Saí ontem e estou bem. Estou saindo desde a semana passada e nada me aconteceu.

Minha avó me chamou para comer na casa dela hoje, mas não consigo ignorar o fato de que fui fazer exame periódico no início da semana e tive que colocar um fone de ouvido usado em diversas outras pessoas para o exame, sem nenhuma proteção ou higienização, várias pessoas sem máscaras, ou tirando a máscara no meio da vida, aglomerações e desrespeito as legislações em vigor. Mas se eu verbalizar isso vão me chamar de alarmista. Posso contaminar meus avós. Toda vez que minha avó me chama para comer alguma coisa na casa dela contabilizo quando foi a última vez que saí. Se não tenho a margem de segurança de no mínimo 14 dias, restrinjo meu contato com eles. Acho que não estou com a falsa sensação de segurança.

Relatei isso por que pensei que estamos vivendo um tipo de exílio contemporâneo, que me parece um tanto esquisito. Meus pais estão em outro estado, na casa da minha irmã, e meus avós estão a duas quadras. Por causa dessas limitações que o vírus está nos trazendo, estamos vivendo pequenos exílios, pois não temos a liberdade de ir e vir como antes. Não é necessariamente a distância física, mas a falta de liberdade. Por isso caracterizei como exílio, é uma ação forçada por fatores externos. Isso tudo vem junto com o medo da morte, e infecção também.

Essa sensação de exílio, na minha opinião, é agravada pelo país em que estamos. Temos um desgoverno que nos restringe informações, então não conseguimos ter noção da realidade, o que nos ilha ainda mais. Aumenta a insegurança, pois não podemos confiar nas informações divulgadas pelos órgãos responsáveis do nosso país. As coisas não eram transparentes antes, não se tem dúvida, mas estamos vendo essa corrupção se agravando, e caminhando para um caminho perigoso, com características dos regimes totalitários. Assusta mais um pouco então.

Estamos exilados de contato e informação no nosso próprio país, de maneira bem clara e evidente. Cada decisão consciente dos nossos governantes em mascarar, esconder informações, omitir, deixar impune, quando mostramos que estamos vendo, estamos cientes do que estão fazendo, mostra o poder que eles tem em nos calar, o poder que eles tem sobre as nossas vidas. Sempre tiveram, por isso que temos os genocídios da população negra e indígena tão naturalizados em nosso sistema. Isso não é de agora, só está sendo estampado na grande mídia agora, pois já tínhamos resistência nas mídias também. Isso foi construído e estruturado no nosso funcionamento como seres e como sociedade. Talvez por isso estamos vendo alguns movimentos de resistência explodirem em plena pandemia. Essas lutas e esses movimentos já existiam, só estão mostrando para as pessoas que estavam dormentes e/ou inconsciente, com relação a essas políticas, que precisamos resistir. O mundo é de todos que vivem nele, por isso nós escolhemos os representantes que passeiam por lá por um tempo.

Esse exílio pandêmico esbarra diretamente na nossa liberdade de expressão então, não só de ir e vir. As questões da saúde pública falam do nosso sistema político. É um pouco de ingenuidade achar que não ‘discutiríamos política’ em uma crise sanitária. Só acontece que o nosso medo e insegurança é elevado ao quadrado quando enxergamos a nossa necropolítica (termo de Achille Mbembe) atuando em plena luz do dia, sem receio de mostrar a sua perversidade.

Pensando nisto já começamos a entrar no luto. A perda de vidas com essa necropolítica, afeta primeiro os grupos mais vulneráveis, as pessoas marginalizadas do cuidado e legislação do estado. É o pobre que é obrigado a trabalhar e não tem amparo, do empregador e do estado, para fazê-lo. A empregada doméstica que tem que levar o filho no trabalho e ele morre por descaso da patroa, enquanto a empregada passeava com o cachorro desta (caso do menino de 5 anos Miguel e a patroa responsável Sari Mariana Côrte Real). Uma empregada doméstica é considerada serviço essencial em plena pandemia, pois aquela mulher, branca e rica, não pode limpar a própria casa e passear com o próprio cachorro. É revoltante! Isso que estou resumindo a história. Mas como o vírus não escolhe cor e status, afetou a casa grande também. Que mundo globalizado! Só por isso temos uma comoção maior da população e dos meios de comunicação mais tradicionais e detentores do poder, que flertam com essa política e se beneficiam com ela. Estamos sentindo o reflexo dessa estrutura política, a falta de investimentos, a marginalização da ciência, da pesquisa, das universidades públicas, do sistema único de saúde. Quem pode nos salvar é quem estava às mínguas na prisão.

Essa profundidade do luto não atingiu a todos. E acho que nem vai. Dificilmente teremos algo que vai afetar as pessoas da mesma maneira. Quanto mais escrevo mais me repito, ao meu ver. Algumas coisas parecem tão óbvias, mas tem uma parte da população que consegue se isentar dessa visão, dessas obviedades com os seus privilégios, condomínios fechados e carros blindados. As coisas vão ruindo aos poucos. As rachaduras só vão refletir na cobertura quando toda a estrutura estiver comprometida. Talvez esse seja o luto profundo que sinto, e é difícil verbalizar para os que insistem em permanecerem inconscientes, como se a vida do outro não lhe afetasse diretamente. E o fato desse descaso e desigualdade estar na base das nossas estruturas, de maneira tão naturalizada, é usado como justificativa para esses que querem se isentar da culpa, pois ‘isso já existia’, ‘já era assim’, como se todas essas lutas e resistências não fossem válidas por que o problema já existia, não é culpa do Bolsonaro. Essas resistências já existiam também, e você não via. Isso só exacerba mais ainda meu ponto de vista.

Estamos vendo os traços de psicopatia sendo evidenciados e aprofundados nas pessoas ao nosso redor. E nas pessoas próximas é quando mais dói. Esta é mais uma faceta desse luto, não só perder as pessoas perto de você pelo vírus e pela necropolítica, mas perder os relacionamentos, respeito, empatia, pois não é possível conviver com alguém que escolhe e não se importa com a morte do outro. Está difícil existir neste mundo. Um luto multifacetado de mãos dadas com um exílio intangível. Precisava desabafar esses pensamentos, espero que você tenha o amparo que precisa nessa pandemia.

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