Autorretrato - Capítulo Treze - Dança

        Ah, minha querida dança! Amo-te tanto que chego a te odiar, e por tanto, odiar-me por completo. Gostaria de nunca ter te encontrado, pois agora já não existe mais desencontro possível.

        Desejaria que meus pés permanecessem no lugar se você não tivesse me dado a graça de voar sem sair do lugar. É uma magia muito custosa de se experimentar, gostaria que alguém desse esse aviso, mas não sei se serviria de algum juízo.

        Pergunto-me se já nascemos com algum defeito, se sentimos o cheiro dessa insana dança que nos seduz a mares de distância, e nos deixa a mercê, e nós seguimos na embarcação sem saber o porquê. Talvez essa tendência autodestrutiva já veio de berço.

        Gostaria de estar mais feliz, de poder dizer que foi tudo como eu imaginava, mas foi melhor. Foi perfeito. Acho que encontrar essa perfeição nos deixa um tanto insanos, então nossa incredulidade impede um pouco aquela estúpida euforia descontrolada tomar conta da felicidade.

        A verdade é que nós chegamos ao final do arco-íris, então entendemos todo o caminho. Damos o primeiro salto sem paraquedas, e só nos damos conta dessa loucura na primeira queda. O problema é que a sensação é tão inebriante que escolhemos saltar novamente em plena consciência, arriscamos tudo o que temos por mais um segundo que seja. Talvez nossa maior indecência.

        Seguimos valsando, aos tropeços e recomeços, dando passos cada vez mais largos, perdendo todo o ritmo, enxergando o nosso íntimo. Gostaria de poder te deixar a qualquer instante, mas sei que nesse exato instante não saberia mais existir.

        Ah minha querida, queria ter forças para te findar. Amo-te tanto que te odeio, não percebi o momento em que nos tornamos uma síncrona batida. Talvez quando te dei minha carne e ossos, consciente dos destroços, quando não me importei com a voracidade da chama que vi ascendendo. Ah! Amo-te tanto que chega a me dar uma tristeza.


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