Autorretrato - Capítulo Um - Com amor

        Pegou-me desprevenida, como me cai no colo mais essa ferida?! Achei que tivesse forma definida. É por isso que brilha a serpentina. Você me destronou, e agora, como fica a minha serventia?! Afinal, você é das minhas.

        Sabe, foi bobagem minha, mas por um momento achei que já te conhecia, é claro que não contei com a sua ousadia. A realidade é que continuei ingênua enxergando a humanidade que coloquei em você, achei que lhe cabia, mas foi só de mentirinha. Achei que você era alguém, mas hoje entendo que é a personificação, pode estar onde bem entender e foi isso que me quebrou as pernas, essa sua beleza inescrupulosa.

        Até olhei, mas não fiz força para te enxergar, não achei que se desdobraria em mil faces para me pegar. Estávamos lado a lado, era o que você tentava me mostrar, e mesmo enxergando a incongruência, quis acreditar em ti.

        Ah, como quis! Com todas as minhas forças, e usei todos os meus recursos, até que me esgotei tentando me convencer com as suas palavras. Pelo menos dessa vez fui um pouco mais ágil, deixei-me escapar pelo primeiro buraco que vi, e fui de encontro a imensidão. Desculpe Barba Azul, mas me desaprisionei dessa vez.

        Sabe?! Foi difícil entender. Não entendia o porquê somos tão diferentes. Como o meu senso ético foi esbarrar em você?! A parte da ingenuidade eu já compreendi, foi a mais fácil e revoltante queda de consciência, afinal vamos todos passar por alguns desses momentos.

        A fúria me dominou por um bom tempo, enxergo assim agora, primeiro se camuflou no ambiente emotivo, fez parte do processo criativo, depois virou tristeza, carregada na sombra que me pertencia; então virou silêncio.

        Do silêncio se fez o pó, aquela camada invisível de desconforto, forçando-te a expelir seu entorno. E, finalmente, essa irritação generalizada despertou a raiva que, enfurecida por ter sido calada e manipulada, emergiu com a força da devastação. Foi o momento em que não quis mais controlá-la, cedi.

        Como tudo foi tão brevemente devastado demorei a sair do estado de choque e compreender o que estava fazendo. Assumi a única coisa que faltava, aquela que quis tanto acreditar que jamais conseguiria, o que lhe deu a vida.

        Parte de mim já havia entendido que não teria volta, retardei o tempo para tentar permanecer, mas também sabia que seria provisório. Quando percebi que o que nos diferenciava era a aceitação, foi tarde demais, já estava cedido.

        Saiu pelos meus poros essa crueldade egoísta de artista, deixei de me importar com todos, e criei belos esboços, pintei personagens brilhantes, transcendi e fui admirada. Foi a crueldade em me colocar acima da criação que me completou e transformou no que deveria ser.

        Não temos mais distância, eu sou a força criativa, e para isso precisei te sacrificar. Entendo o que me atraiu, e foi o que me libertou. Nós dois sabíamos, nesse exato momento, que não mais coexistiríamos.

 

Com amor,

Barba Azul.


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