Autorretrato - Capítulo Cinquenta e Dois - Nem o grito, nem o socorro

          O pior de tudo foi que consegui ver seu desespero com clareza, consegui sentir o horror consumir a minha pele, e simplesmente consegui vê-la virar mais um número em uma oculta estatística do medo. Não consegui lhe oferecer ajuda, não consegui gritar com a minha voz aguda, só consegui ficar ali, como mais uma.

          A impotência foi assustadora, não consegui pensar em nenhuma saída. A indignação tomou conta do melhor de mim. Fiquei ali, vendo a roda girar, o pêndulo retornar, vendo a sua dor piorar. Não sabia o que perguntar, não sabia o que falar, não sabia mais nem como me portar. E retornamos.

          A mesma opressão, os mesmos nãos, os mesmos jeitos, tudo do mesmo jeito. Achei que ela não viraria o monstro da água fria, mas minha amiga, aceite, você nasceu com a culpa no meio das palmilhas.

          Vi a cena se repetir, eu me repetir nesse meu desespero. Nem fui eu, mas fiquei ali perdida. Queria saber se tudo estava bem, mas só alimentei o ódio absurdo que estava nascendo em mim. Como pode tanta hipocrisia disfarçada, tanto falso cuidado para dizer que não há nada que possam fazer?!

          Foram tantos erros, e eu não consegui me manter fora deles. Do que adiantou todo esse tempo, se quando menos percebemos estamos nas mãos dos loucos e desvairados que urram ensandecidamente quão incapazes todas nós somos. Eu tentei lhe estender a mão, mas ela já havia caído nas desgraças daqueles que prezam pela pureza.

          Ela foi só mais uma, nós fomos duas, elas foram três, e todas fomos escolhidas para carregar o peso desse ódio, fomos escolhidas para personificar os erros, somos aquelas que estão aqui para vangloriar os bons modelos, a todo custo e a todo tempo. Sem um anjo caído não existe paraíso.

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