Autorretrato - Capítulo Cinquenta - Do amor ao ódio

Por você, meu bem querer.

        Nunca foi aquela pessoa fácil, mas sempre soube enganar, o mérito da sua simpatia vem da mais rude falsidade, inescrupulosa e malcheirosa.

        Se você soubesse o enjoo que me faz ter, eu não estaria mais viva, um monstro você me tornaria. Mas tudo começa com uma desonesta bem feitura, daquelas que vangloriam serem unicamente especiais. Não te tiro o mérito, mas te devolvo essas duras falcatruas.

        Há um convencimento de ternura que envolve o pobre numa submissa compostura. E você, fazendo questão de ter essa cara de filha-da-puta, constrói o ardiloso caminho da sua vitimização.

        Sempre vai do amor ao extremo ódio, ditador da boa postura. Não existem sobreviventes no seu campo de batalha, apenas você caído ao chão, mutilado. Sem razão e sem emoção, você não tem mais sanidade para achar outra saída que não seja essa solidão falida.

        Existe um amontoado de palavras, todas ditas ritualisticamente com a periodicidade de uma manipulada temorização. Depois destas cuidadosas pronúncias hipnóticas, nem eu acho outra saída que não seja o despedaçar da minha vida.

        A ponta do seu cajado de rei aponta o julgamento corrupto que te deu essa fama de insano monstro da Islândia. As mortes que colecionas continuam as certezas que faz questão de ter de si. E de tudo você já sabia. Você já sabia.

        Mantive as minhas marias-chiquinhas, cruel Barba Azul, mas não sei quanto tempo consigo esconder de ti as minhas imundas mãos mal lavadas. Estou com a arma apontada na cara, mas por um tempo me enganei, só não sei o tamanho do engano no qual me enfiei.

        Se eu puder te pedir algo, que seja um me desculpa barba ruiva, a sua crueldade não intencionada é a maldição com a qual você faz questão de lavar a cara. Desculpa.

        Encruzilhar o destino numa culpa é uma especificidade custosa e unicamente isolada. Se eu deixar de existir aqui, posso alcançar-te na sua própria mente. Você que mente!

        Por favor, não me veja, estou escapando dessas tristezas que você amarra por aí, deixei conceitos vazios presos nos seus domínios e já tenho o mapa da minha fuga. Se a porta não for aberta, você nem vai perceber a minha saída da sua teia de tramas. Descobri a porta para sair desse furacão, Barba Grisalha.


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