Autorretrato - Capítulo Quarenta e Nove - Barbazul

        Falta na cor dos teus olhos a origem, aquele pedaço de vertigem que trava um embate nostálgico com a desilusão. Posso ver os erros e os sentimentos flutuando na sua imensidão, mas não consigo te mostrar a inteireza de compreender esses feitos, consigo apenas reprimir seu pedaço de juventude.

        Já fui camelo, já fui cortejo, já fui aquele desejo do beijo. Não sei quando parei de ser, pois outra coisa virei. Aquela brusca guinada que nos transforma no contexto e no espaço tem idade para acontecer, sem isso a gente mal vê a vida esvaecer.

        Não posso nem te dizer que é a solidão, pois isso já estava previsto. Cheguei nesse mundo com muita força, e não consegui desvencilhar as dificuldades do meu viver de minha personificação. Colhi os belos horrores que vi neste mundo e aterrei essa podridão no solo da plantação do meu castelo. Preferi manter certas coisas bem escondidas, mas o máximo que consegui foi enganar alguém por quatro anos.

        Cresceram paredes que sussurravam as surras que levei, alongaram-se corredores repletos de histórias mal acabadas. Ao invés de um palácio fiz um circo de horrores. Meus medos cresceram exponencialmente, e meus traumas se afundaram profundamente. Quanto menos eu queria mais essas mundanas origens me ancoravam em grotescos conceitos. Criei a receita da desavença.

        Mantive certas atitudes, comprei os devidos cuidados para não ser enrolado por alucinações transfiguradas em realidades, e só o que consegui foi manter o meu picadeiro cada vez maior e mais distante. Não há quem aguente esse cheiro por mais de cinco minutos.

        Eu sei que você já sabe, meu doce querubim. Todos os que entram aqui são mortos por mim, todos que eu trago são aprisionados pelas minhas repugnantes lacunas. Não consigo e nem quero evitar isso, foi tão bom sentir a sua luz ralentar essa passagem de tempo, seu leve coração bombear os meus horrores para longe.

        Por um tempo, apenas, agora que tudo retorna e sua cor lhe foge dos lábios, agora que sua sanidade supera a sua ingênua bondade, você consegue me ver aqui, sentado no meio dessas carniças ensanguentadas. Preciso renovar a minha podridão.

        Desculpe-me pequeno anjo, você foi um bem necessário.

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