Autorretrato - Capítulo Vinte e Sete - A máscara da inconfiabilidade

        O desespero se calcificava em seu controle, em sua absoluta paciência e sua comedida presença. Havia a disponibilidade, e acho que era isso que exatamente a machucava mais: a presença, mesmo que contorcida e mal resolvida, esperneava a cada palavra ríspida, a cada choque da realidade que vivia, e, acreditava ela, via-se menos e se prendia mais apertado no balanço dos seus pensamentos ilhados.

        A cada trombada, as rachaduras esfacelavam de si, a treinada compostura que ela se prometeu ter, rompiam toda a medida que ela se fez. Ela só conseguia se configurar nas suas forças singulares, no pouco mais diferente de todo o complexado e desrespeitoso resto, o pouco que ela conseguia dizer seu, no mérito de toda e qualquer mudança, as poucas certezas flexíveis que ela conseguia afirmar. E era exatamente muito pouco, quase nada de si.

        E todo o resto?! Era muito egoísmo de sua parte sentir toda uma força externa que a fazia implodir toda vez que algo de si tentava desesperadamente sair?! Pode ser que não seja tão desesperadamente assim, pode ser que parte da dramática dor tenha se voltado para um empenhado trabalho de cristalizar em si algumas facilidades que a possibilitassem passar pelos dias com um pouco de inteireza. Talvez isso exigisse uma complacência que ela já achava não mais conhecer; talvez de tanto que capengava e choramingava.

        Discretamente, ela buscava coisas para barrar os outros de si, para se mudificar numa possível invisibilidade. Ela escondia o peso em choque no estado de seu olhar, a boca ofegantemente entreaberta, o esterno comprimido. Afinal, todos a conheciam tão bem que nem precisavam vê-la.

        E era bem aí que sua doce ingenuidade escorregava. Eles não precisavam vê-la no sentido de escutá-la ou notá-la enquanto escolha autônoma no mundo, mas eles também sentem, e sentiam-se incomodados, incomodados por ela estar canalizando sua energia, por estar envolvida com facilidade em uma felicidade de voo. Parecia que sabiam que era um refúgio que a suspendia num balançar das horas, e parecia que não a queriam assim. Ela tinha que estar à maneira que a aceitavam: complacentemente impotente, aceitando o que vinha, falando o que queriam ouvir, vestindo-se como a queriam ver. E de muitas dessas coisas ela sabia que não eram suas escolhas, não eram ela, era por isso que saia tão pouco de si perante esses todos quereres?

        E assim ela ia se marginalizando, sendo uma travestida, travestindo-se de modos, trejeitos, defeitos e tormentos. Será que começaram a perceber seus muitos disfarces e começaram a ver nela uma inconfiabilidade mascarada numa quietude de esconderijos?!

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