Autorretrato - Capítulo dois - O acalanto da escrita

    "Se o papel é uma extensão do ser humano..." - pensou - "ele pode ser considerado humano!". Então compreendeu porque essas palavras não podiam ser ditas de outra maneira, para outro ser que não fosse si mesma, que entenderia os entraves e desentraves de suas compreensões.

    Talvez todas as cores das quais ela insistentemente se remodelava, pintando novos traços, novos trejeitos, era uma maneira de consertar seus desconcertos, ser mais uma regra em um imenso livro de regras plausíveis; mas simplesmente plausível, era o máximo que conseguia se sentir, meio a tudo, uma possibilidade plausível, mas óbvia de certa maneira.

    E por que não era possível querer, simplesmente, ser a imagem da poesia que nunca foi dita, mas sempre permaneceu diluída em tudo o que não tocou, flutuando nas despreocupações do flutuar, sem ter que assumir poses e retoques, podendo voar num moto-contínuo dos sorrisos infantis, que brincam para poderem brincar um pouco mais, em si mesmos, mas com os outros, fossem o que fossem?! Não assumir um partido opressor que afirma seu oposto nas negações, mas ser a sua opinião, plausível e possível de comunicação, como uma rede no espaço-tempo dos compartilhamentos, e não uma caixa no compartimento dos radicalismos. Apenas uma vasta poesia subjetivamente objetiva de incontáveis maneiras singulares.

    Se a validade depende da invalidade para se concretizar, talvez contornar fosse suportar, ver e rever, não fugir, mas permear o que achava impossível de lidar. Ela cometeu o erro de achar que isso bastava, que várias coisas bastavam, sem considerar que o erro mostrava a ela o que poderia ser um acerto, no seu particular jeito de ser necessário nas vírgulas e reticências da vida.

    Queria se convencer de que era ela, sempre foi, e enquanto vivesse seria; seriam suas particularidades que tiravam seus pés do chão quanto mais os estacava nele, viajando sozinha nas proibições que lhe agradavam, cuspindo no que diziam ser o seu valor aceitável mediante o que podia ser dito, pensado, sentido, vivido. Ela queria ser o que acontecesse, sem se preocupar com o valor da moeda, e sim com a densidade de sua mutável composição.

    A irritação provocada pelo respirar do dia lhe trazia para suas palavras, procurando se inundar num silêncio que a desmanchasse na serenidade do contínuo fluxo de transformação das nuvens.


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